TEXTOS

Essa página é dedicada aos textos que nos apoiamos para a construção do nosso filme e de nosso ensaio antropológico que em breve estará presente no site ...


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Texto de Francisco Monteiro sobre a música enquanto forma peculiar de informação ou, melhor dito, "enquanto objeto de compreensão e interpretação".




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Interpretação Musical:
Princípios semiológicos para a compreensão da obra musical enquanto objeto de compreensão e interpretação

Francisco Monteiro
(Publicado na "Revista Música, Psicologia e Educação" 1999, CIPEM., Escola Superior de Educação, Porto, 1999)

Índice

Introdução

O estudo que aqui se propõe parte da necessidade de conceber formas de análise musical que possam ser úteis não só num conhecimento e compreensão como, em especial, numa interpretação musical.

Para uma definição exacta dos termos devem ser salientados os pontos que se seguem.

A.

No fenómeno musical, quando se fala de música entende-se a sua dimensão real, sonora — o que se ouve — diferente de uma dimensão conceptual, virtual — aobra musical.

obra musical tem como base:
1- a composição, o acto de criação do autor, primeiro momento de existência da obra;

2- a percepção do ouvinte, apresentando-se a obra musical, então, na forma de música;

3- o testemunho do seu suporte (notação, gravação, esquema, a memória de uma audição), sendo então a sua percepção feita através do estudo desse suporte1..

A obra musical pode definir-se como o produto de actividades psíquicas e físicas de um músico — o compositor — que terminam logo após a sua notação ou execução imediata 2. A partir deste momento de criação adquire um carácter virtual. A obra musical realiza-se, actualiza-se, nas suas diversas execuções e audições transformando-se então em música 3. Mas até ocorrer essa transformação, a obra musical não é música, não é uma coisa real com propriedades determinadas independentemente da sua percepção, mas algo virtual e intencional.

B.

Seguindo os pressupostos delineados por Molino e Nattiez, compreende-se o fenómeno musical em três diferentes dimensões:
1. a dimensão poiética — o acto de criação;

2. a dimensão estésica — a percepção e a compreensão;

3. o nível neutro — o que resta desta troca, independente da criação ou de uma possível percepção e/ou compreensão (o lado — o resíduo — "material" do processo)4.

A estas três dimensões correspondem diferentes papeis perante a música e a obra musical: o criador numa poiésis, o ouvinte numa estésis e a partitura, a gravação, mesmo a memória de uma audição (ou execução) como um suporte material do nivel neutro da obra musical.

No entanto, este sistema pode-se tornar bem mais complexo se incluirmos todo um número de intervenções que têm a ver com a criação inicial, com a sua compreensão por um intérprete, com a própria interpretação e com uma audição e compreensão final.

Assim, múltiplas aproximações, criações e compreensões se vão sucedendo até formar uma ideia final.

C.

O estudo que aqui se pretende realizar não se limita a um reflexão sobre a dimensão neutra da obra musical, reflectindo porventura alguma necessidade de objectivação; assume, desde início, que qualquer aproximação e compreensão é, em si, um acto subjectivo — de interpretação no sentido linguístico do termo — dependendo das circunstâncias em que decorre, quer seja no contacto (estésis) com a música (audição) ou com um qualquer suporte material (partitura, gravação, etc.); esta estésis, sendo um conhecimento e uma compreensão da obra, toma assim um carácter criador — poiético — de uma ideia (hermeneutica) da obra musical.

Por outro lado, considera-se como válidos para estudo diferentes suportes que se revelam na obra musical: a partitura, a gravação (suportes materiais tradicionais do nível neutro), mas também a memória da audição, a memória de uma contínuo emocional que lhe é aderente, mesmo as vivências simbólicas que se evidenciam na audição e/ou na interpretação da obra.

Assim, serão tidos em conta diferentes factores próprios de uma atitude subjectiva e criadora, de índole cultural, social, circunstancial, mesmo pessoal, desde que passíveis de uma análise, de uma sistematização, de uma universalização mesmo que limitada.

Pretende-se encontrar diferentes formas de estruturação simbólica da obra, tendo como ponto de vista não só o acto criador inicial ou o resultado objectivo dessa criação como, essencialmente, as possibilidades de vivência e compreensão dessa obra.

Diferentes Formas Simbólicas

O primeiro momento de existência da obra musical consiste num acto de criação, de construção da obra — numa poiésis inicial, referindo a terminologia adoptada por Molino/Nattiez. E neste acto de criação, qualquer obra musical, pela sua natureza intencional, vai invocando a existência de objectos musicais — sons, construções sonoras — com uma determinada importância na construção musical. Estes objectos musicais existem e como tal são considerados devido somente à sua importância em relação a outros, mais ou menos semelhantes: remetendo para outros objectos musicais dentro da mesma obra, funcionam como símbolos, são verdadeiros símbolos musicais. Estes símbolos existem, assim, não especialmente em relação a conceitos, a coisas, mas em relação a outros símbolos semelhantes, com uma determinada importância na estrutura da obra em que se enquadram. A tradição de análise de Riemann, Schenker e toda uma linha de análise musical de índole estrutural, remetem para o estudo deste tipo de símbolos, da sua sintaxe, enfim das relações (tonais, harmónicas, formais) dentro de uma organização exclusivamente musical, quer seja uma só obra, ou mesmo um conjunto de obras (um estilo, uma época, uma técnica, etc.).

Mas considerando as evidências, observações, experiências e as considerações de muitos musicólogos, psicólogos e outros teóricos da música — S. Langer, L. B. Meyer, Sloboda, Clynes, Hanslick até um certo ponto — são possíveis de encontrar elementos musicais — símbolos musicais — que remetem para acções, para coisas, para movimentos, para ambientes: estão em substituição de outros que não são em si objectos musicais. É o caso, por exemplo, dos toques militares, dos sons onomatopaicos, das figuras de retórica musical (Affectenlehre em música barroca), das sonoridades padronizadas passíveis de serem encontradas em instrumentos electrónicos. É, por outro lado, o caso de uma possível relação intrínseca (psicológica e mesmo fisiológica), não intencional ou premeditada, entre os seres vivos enquanto organismos sensíveis (emocionais) e uma sucessão de sons, entre o ouvinte e a (uma) música; uma relação psicomotora entre o indivíduo e uma possível simbolização de um contínuo emotivo reconhecível através do "movimento" da música — o seu ritmo, o tempo, etc.

SÍMBOLOS EXOGENOS

1. SÍMBOLOS ORGÂNICOS

" Nous dirons, alors que la musique opère au moyen de deux grilles. L’une est physiologique, donc naturelle; son existence tient au fait que la musique exploit les rythmes organiques, et qu’elle rend ainsi pertinentes des discontinuités que resteraient autrement à l’ètat latent, et comme noyèes dans la durèe." (Levy Strauss, 1974: 24)


A emoção pode ser definida como uma reacção a um estímulo mais forte, não esperado: uma reacção de emergência, uma luta pela adaptação psíquica (e física) do indivíduo a um estímulo não esperado, para levar ao restabelecimento do equilíbrio psicofisiológico do indivíduo. Algumas emoções primárias como o medo, o amor, a alegria, estão bem definidas e caracterizadas, até mesmo em termos musicais.

É conhecido que o som pode produzir tais emoções, e não só a música mas todos os tipos de sons — até mesmo todos os tipos de artes, modos de comunicação ou qualquer estímulo — pode induzir emoções. Como Budd (1992) explica no seu ensaio, as emoções não são uma propriedade ou algo inerente à música mas um possível efeito da audição musical. Como uma resposta a um estímulo musical, as emoções podem agir como reacções à audição de — ou ao envolvimento com — qualidades e construções sonoras (uma mudança de intensidade, de textura, de timbre, etc.).

Mas as emoções também podem ser entendidas como algo mais profundo, mesmo não definível. Wallon5 descreve a natureza profunda das emoções primárias, o seu carácter neuro-psicológico e a sua importância genética no desenvolvimento de comunicação, de interacção e socialização na infância. As emoções podem também ser entendidas não como uma reacção temporária a um estímulo específico, mas como um continuum de reacções a vários estímulos que vêm do exterior e do interior do indivíduo6.

Estando a música sempre em estreita relação com o tempo, pode-se conceber que obras musicais (pelo menos alguns aspectos de uma obra musical) sejam como que um tipo de simbolização de aspectos da vida, do tempo vivente. Nesta medida é também possível imaginar que a música pode, por sua vez, causar umcontinuum emocional idêntico num grupo de pessoas que a escutam, e tais emoções ficam como que apensas ao conhecimento dessa obra. Assim, as emoções não serão inerentes à música, mas algumas emoções (ou continuum emotivo) poderão simbolizar uma determinada obra musical, como algo intencional.

Este tipo de simbolização cria uma ligação entre o tempo e o movimento fisiológico — o desenrolar da vida — e o tempo e o "movimento" musical — o "desenrolar" dos acontecimentos musicais. Na poiésis, por exemplo no acto de composição, estes símbolos orgânicos são, na terminologia usada por Pierce e E. Clark, ícones, porque eles aparecem na música como uma imitação — mimesis — de um continuum emocional imaginado pelo compositor, imitando um movimento real ou virtual e sua constante mudança7. Poderão constituir, na estésis, por exemplo na audição musical, o que de mais imediato se pode compreender de uma determinada obra musical: as reacções emotivas imediatas do ouvinte à sucessão de sons ouvidos. Podem ser, assim, formas (embora precárias) de definir essa obra pois, através de uma determinada "compreensão" emotiva (e consequentemente psicofisiológica) desse contínuo sonoro, a distinguem de outras obras que engendram "compreensões" emotivas diferentes.

Os símbolos orgânicos existem nas relações entre elementos musicais como tempo, ritmo, dinâmica, a linha melódica, a textura e factores inerentes à vida como tensão, felicidade, energia, calma, etc.

"Music also presents us with an obvious illusion, (...) the appearance of movement"8


Estes símbolos orgânicos não são objectos musicais9, não são sons ou grupos de sons, mas apenas vertentes de uma obra musical. Eles aparecem muito ligados ao ritmo, ao fluxo de eventos sonoros no tempo, como descrito em Gabrielson (1983) e Clynes e Walker (1982). Podem ser, numa poiésis, resultantes da forma como os acontecimentos musicais — e os objectos musicais — são dispostos e se sucedem horizontal e verticalmente no tempo: da tensão, do "movimento" da música, do "gesto" musical. Sendo símbolos exógenos, remetem, através do seu poder mimético de factores inerentes à própria vida, para qualidades como a lentidão, a rapidez, a força, a fraqueza, o nervosismo, a tranquilidade. Numa estésis, os símbolos orgânicos constituem-se como símbolos na relação entre um determinado desenrolar dos fenómenos sonoros — o desenrolar da música — e o seus (possíveis) efeitos emocionais no intérprete e/ou no ouvinte. São, assim, de grande importância na música de dança ou em música descritiva. Permitem a concepção e uma possível compreensão da música como uma continuum vital, um movimento, uma tensão plástica constante. Este tipo de concepção e de compreensão constitui a forma mais simples e directa de idealização, de fruição e de compreensão musical.

Indícios destes símbolos orgânicos são indicações de carácter (Allegro, Andante, con forza, crescendo, subito) comummente inscritas em partituras, reacções físicas que se observam na audição musical (movimentos como bater o pé, reacções do corpo na audição, variação de pressão sanguínea, etc.10), e mesmo formas gráficas de construção de partituras do séc. XX.

Dificilmente individualizáveis como símbolos, aparecem geralmente como os efeitos ou as associações que uma música (ou parte de uma música) produz num ouvinte. Podem às vezes ser confundidos com o metrum, ou com o ritmo, devido à sua conexão íntima com o tempo — o tempo vivente. Mas também podem ser entendidos na evolução de texturas, do timbre, da harmonia, da melodia, na evolução do som e suas qualidade, num sentido mais lacto de ritmo. Na música ocidental, podemos ver exemplos no carácter melancólico da 3ª sinfonia de Beethoven (p.e. o 2º movimento), no carácter dançante de Rondos de Mozart em Concertos de piano, ou na ansiedade de Bartok no Mandarim Maravilhoso.

"Le charme de la musique, qui peut se communiquer si universellement, semble reposer sur le fait que tout expression du language possède dans un contexte un ton, qui est approprié à son sens; ce ton indique plus ou moin une affection du sujet parlant et la provoque aussi chez l’auditeur." (Kant (1989), §53)


Os símbolos orgânicos existem num código, num certo contexto cultural e social. Alguns símbolos orgânicos podem, talvez, ter um carácter universal — comum a todos os seres humanos — baseado na identificação do "movimento" da música com as actividades psicomotoras e as reacções emocionais que aparecem nos seres humanos. Ouvindo uma obra musical, todo o ser humano é impelido a reagir de um certo modo: o indivíduo reage ao movimento " sonoro" com um real movimento — um gesto — ou com um movimento imaginário ou até mesmo um movimento intelectualizado — o movimento possível em face dos códigos complexos de comportamento cultural.

2. ORGANISAÇÕES SONORAS SIMBÓLICAS

2.1 Símbolos onomatopaicos

Também é possível considerar, de um modo mais preciso, algumas relações simbólicas exógenas entre certos objectos musicais — ou parâmetros musicais — e coisas ou objectos, acções, até mesmo animais. Podemo-nos referir, por exemplo, ao cuco imitado por um instrumento construído para esse propósito (J. Haydn), o canto de um pássaro imitado por uma flauta ou outro instrumento (Messiaen), uma batalha feita pelo ritmo e os sons de um órgão (música de Renascimento), a máquina referida por repetições mecânicas contínuas de um motivo.

Contrariamente ao que escreve S. Langer, muitos outros exemplos semelhantes são possíveis de se encontrar na música ocidental na actualidade e como tal devem ser entendidos na música ocidental: o trovão, a respiração, o espaço, o mar, a cidade, os gritos, os cavalos, são construções sonoras que normalmente são imitadas na música, em música de filme, publicidade, etc. Embora não apareçam em todas as obras musicais, quando o fazem têm um interesse acrescido e influenciam a compreensão da obra musical.

2.2 Símbolos culturais

Os compositores e os músicos usam, por vezes, outros símbolos que não têm qualquer carácter mimético ou semelhante. Quando um compositor se quer referir ao campo, à caça, ou até mesmo a algo vagamente relacionado com essas coisas (cavalos, o anúncio da chegada de um grupo das pessoas, animais selvagens, etc.), o instrumento que usa é a trompa, ou imitará este instrumento através das típicas sextas paralelas tocadas por trompas naturais.

Este símbolos aparecem em substituição de alguns objectos, paisagens, ou ideias, mas por vezes têm com eles somente uma vaga relação. Existem dentro um quadro cultural determinado, em desenvolvimento constante, entendidos por um número limitado de pessoas. Não vivendo de uma relação onomatopaica ou imitativa directa, eles são símbolos porque são normalmente empregues num contexto muito específico por um determinado grupo de pessoas. Alguns dos elementos da retórica musical estudados na Affectenlehre Barroca11, os leitmotive na ópera de Wagner, até mesmo a quinta diminuta (o famoso diabulus in musica), os sons usados em instrumentos electrónicos comerciais, são exemplos destes símbolos culturais.

Estes símbolos12 podem ter uma grande importância na análise pela sua relação com outros objectos ou parâmetros musicais, com outras obras, com um estilo, com o contexto histórico. Quando compositores como Schönberg, Ligeti, Schnitke, Milhaud e muitos outros usam ritmos de música popular (valsa, samba, rumba, rock, habanera, etc.,) em contextos específicos (e com intenções específicas), eles oferecem ao ouvinte um novo campo de relações simbólicas, de formas de compreensão da obra no seu todo, passível de compreensão a pessoas que conhecem esses ritmos e o seu carácter socio-cultural. Quando músicos do barroco e do século XVIII usaram a Ouverture francesa, certamente não quiseram sempre anunciar a entrada do Rei; mas os músicos e muitos amantes de música poderiam entender o seu carácter introdutório, a pomposidade da marcha lenta, como o anúncio de algo — a suite, a sinfonia, etc.

A citação musical é outro símbolo cultural poderoso, tal como acontece em A. Berg no concerto de violino, ou em obras modernas e contemporâneas13. Até mesmo a imitação de um estilo14, como em Schnitke (K)ein Sommernachtstraum ou noutros compositores contemporâneos (os Ländler de Rihm, os Lieder de Killmayer, etc.), tem propriedades semiológicas que certamente não escaparão aos ouvintes contemporâneos.

Podemo-nos perguntar se é possível incluir como símbolos culturais objectos musicais como o baixo figurado de Alberti, uma sucessão tonal IV-V-I, até mesmo uma escala. De facto, os símbolos culturais existem porque são compreendidos como símbolos num contexto (socio-cultural) específico. Uma sucessão simples de acordes não existe como um símbolo exógeno num contexto tonal porque não tem qualquer particularidade — é somente uma sucessão de acordes no meio de outras afins. Pelo contrário, se aparece num contexto não tonal, ou num contexto onde uma simples sucessão de acordes IV-V-I fica de alguma forma proeminente, pode ser entendido como um símbolo de simplicidade tonal, ou de música velha, ou mesmo de estupidez; não sendo compreendido como tal, não serão tomadas em consideração as leis da boa continuidade e da coerência interna da obra.

O aparecimento de um comum IV-V-I ou de um baixo de Alberti é sempre um sinal de um estilo particular, excluindo outros que não os usam. E, nesta medida, todo o objecto musical, se for entendido como uma particularidade ou característica de um estilo (ou de um grupo de obras), torna-se um símbolo desse estilo. Neste caso, a sua relevância no contexto da obra não é, talvez, proeminente, mas a sua identidade como um elemento de um código — um estilo, uma forma de pensamento musical — é inconfundível e assim se torna um símbolo desse código, desse estilo, dessa forma de pensamento. Então, alguns parâmetros (texturas, timbres, etc.), infra-estruturas (p.e. séries, escalas, modos, acordes) e formas podem ser entendidos como símbolos culturais pela sua identidade e importância num código musical específico.

SÍMBOLOS ENDOGENOS — OBJETOS MUSICAIS E INFRA-ESTRUCTURAS

A música é feita de construções de sons e silêncios. Estas construções usam relações simbólicas entre partes, elementos, propriedades, estruturas sonoras, sem qualquer referência exterior. Estes símbolos existem devido à sua relação a símbolos semelhantes na mesma obra, até mesmo em obras diferentes. São objectos musicais: grupos de sons, motivos, temas, organizações sonoras, pertinentes por causa da sua relação intencional (simbólica) com outros da mesma espécie, com alguns dos mesmos parâmetros e propriedades. Não se podem interligar de uma forma indefinida sob pena de perderem a sua unidade, a sua existência simbólica, como partes de um todo; a sua interligação obedece (eventualmente) a regras, a esquemas formais, dentro de códigos definiveis — o código da construção musical, da composição, do género, do estilo, da época, do local.15

A famosa célula rítmica de Beethoven (...—) é um exemplo paradigmático: não só existe na 5ª sinfonia mas também em muitos outras obras, até mesmo a nível político, tornando-se também num símbolo cultural.

Alguns destes símbolos não são sequer objectos musicais mas só perspectivas, parâmetros de objectos, até infra-estruturas. Como exemplos podemos ver as infra-estruturas modais de Messiaen e Bartok, os padrões métrico/rítmicos da música de dança, etc. A sua compreensão está intimamente ligada ao conhecimento destes códigos — da sua sintaxe — e dependerá das expectativas, do conhecimento e do interesse do ouvinte por este tipo de música e pela utilização que lhe pretende dar. Assim, é facilmente memorizável e reconhecível a melodia de uma canção popular alentejana; a sua estrutura não será, certamente, estranha a ouvintes portugueses; no entanto, a compreensão das estruturas melódicas e harmónicas mais subtis e que estão na sua base, a sequência das diversas frases e a estrutura dos ornamentos que — intuitivamente, culturalmente, organicamente — os cantores empregam nestas canções, implicará um conhecimento profundo das estruturas musicais em causa.

Estes símbolos podem ser identificados e estudados na análise tal como é entendida por Riemann, Schenker, Tovey, Nattiez, etc. A sua caracterização, a sua identidade e o seu sentido — a sintaxe — depende do método, da base da análise e dos princípios pressupostos.

OS CÓDIGOS E A SUA COMPREENSÃO

Para a compreensão de uma obra musical, são de grande importância os códigos implícitos nos diferentes tipos de símbolos. De facto, são o conhecimento e as experiências contínuas com estes códigos que possibilitam uma compreensão mais ou menos profunda das relações simbólicas e da obra em questão: como os sons na linguagem falada, os sons e conjuntos sonoros na música têm um significado específico — simbólico — somente quando são compreendidos dentro de estruturas específicas, com relações específicas, semelhantes a outras construções (musicais ou não), até mesmo semelhantes a outras obras do mesmo compositor ou até de outro. Estas relações, o seu repertório de possibilidades e o seu modo de interagir formam um código — uma estrutura superior — de símbolos.

Estes códigos são parte de "quadros de referência" comuns a várias pessoas, com experiências semelhantes em termos musicais. Qualquer som ou conjunto de sons concebidos como parte de um código — objectos musicais — serão entendidos como um símbolo pertencendo a esse mesmo código e estabelecerão relações com outros com propriedades semelhantes.

Mas a compreensão de um código (qualquer código) não deve ser entendida em termos de um conhecimento académico: a obra musical permite aproximações diferentes, tipos diferentes de compreensão, hermenêuticas diferentes, códigos diferentes de compreensão16, dependendo dos interesses do sujeito, nas possibilidades de compreensão — os quadros de referência — e do uso suposto para essa compreensão. Tal é evidente nos múltiplos tipos de audição e compreensão de obras musicais. Os exemplos seguintes são disso representativos.
1 — ouvintes completamente desconhecedores das estruturas e do tipo de música que estão a ouvir, mas que reagem emocionalmente (possivelmente através de movimentos, compreendendo, talvez, um possível código orgânico universal) e se deixam envolver por essa música — os públicos de músicas não ocidentais na Europa;

2 — outros ouvintes, amantes de um determinado tipo de música do qual ouvem com prazer e renovadamente determinadas obras, mas que desconhecem os meandros do código (da infra-estrutura) que lhes serve de base (em geral o público dos concertos clássicos, por exemplo); na dança utiliza-se a música como base para uma exploração de movimentos do corpo que de alguma forma terão uma relação com essa música (oballet clássico ou as danças rituais, por exemplo);

3 — os intérpretes que de alguma forma têm de conhecer a obra musical através de um (ou vários) dos seus suportes (e códigos) e que não só adquirem uma compreensão profunda como a executam, dando a conhecer a outros algo dessa compreensão — interpretação musical;

4 — o investigador que se esforça por compreender o funcionamento de uma estrutura musical ou de um estilo musical — de um código musical — menosprezando a fruição da própria música e o lado emocional que os próprios símbolos pressupõem.

As possibilidades de compreensão da obra musical são assim extremamente diversas, dependendo do interesse que a própria obra desperta, da sua utilização, enfim, das competências específicas para essa compreensão. Estas competências podem resumir-se a uma (possível) existência de um código empático simples de relações entre o "movimento" sonoro — musical — e o contínuo emotivo do ser humano, através dos símbolos orgânicos. Podem, no entanto, ser proporcionalmente mais precisas, através da profundidade da sua compreensão, do reconhecimento de maior número de símbolos e dos respectivos códigos, de uma hermenêutica da obra.

MÚSICA COMO SÍMBOLO

A música enquanto audição (mesmo parcial) de um todo delimitado (a audição de uma peça musical) tem, ainda, um outro carácter simbólico. Remete sempre para uma construção que presumivelmente lhe está na base; pode, no entanto, não existir tal construção, limitando-se esta a aparecer na sua audição e compreensão17.

Existe como símbolo dentro de um código social que a permite compreender e definir como música ou obra musical, diferente de qualquer outra coisa (o simples facto de ser tocada num concerto, ou de ser escutada com atenção, por exemplo). E pode ser entendida como um símbolo social, cultural e/ou político, dependendo dos códigos simbólicos compreendidos, dos protagonistas, da sua situação social, do seu impacto na sociedade. Tal acontece com os hinos nacionais, com as peças que vulgarmente são definidas como "música clássica" ou como "música popular"18.

Neste processo de audição e compreensão intencional, a música — uma peça musical ouvida — afirma-se, principalmente, como símbolo de algo que possivelmente lhe está na base, que lhe deu geneticamente a sua intencionalidade, mesmo que impossível de se identificar: um compositor, uma ideia musical, uma construção musical, a obra musical. Uma aproximação a uma obra musical nunca é simples e ingénua: está sempre baseada numa grande quantidade de experiências prévias — toda a vida do sujeito, todos as experiências culturais, semiológicas e musicais, todos os códigos apreendidos.

A análise, vista como um processo para a compreensão da obra musical, pode ser uma procura de símbolos, dos seus códigos e da sua importância (semiológica) numa obra ou grupo de obras musicais. E pode também ser o reconhecimento de um plano de fundo cultural, social e musical alargado, de experiências simbólicas prévias que permitirão uma determinada compreensão da obra musical. A interpretação musical — uma extensão de um processo hermenêutico — pode, em meu entender, beneficiar de uma análise que tem em perspectiva vários tipos de símbolos e códigos, que não actua somente em termos estritamente musicais — endógenos — mas também em relação com o mundo exterior.

Sendo por natureza dependente das circunstâncias subjectivas que a envolvem — o tempo, o lugar, o momento, o público, os interesses, todo o contexto da interpretação — a interpretação musical deve estar atenta às implicações simbólicas que surgem da obra musical de modo a ser mais efectiva e mais consciente do seu significado e da sua importância cultural.

- Janeiro de 1999, Francisco Monteiro

Notas:
  1. Cf.(Ingarten, 1989: 51, 58, 60, 64 e 181) e (Martin, 1993: 117).(volta)
  2. Cf. (Ingarten, 1989: 147).(volta)
  3. Considera-se, assim, música como o fenómeno sonoro resultante da execução de uma obra musical; o termo música será sempre associado à vertente sonora do fenómeno musical; ressalvam-se, no entanto, expressões de fácil e imediato reconhecimento como "ensino de música", "música de Jazz",etc.(volta)
  4. Cf. (Molino, s.d.: 112) e (Nattiez, 1987: 34).(volta)
  5. Cf. (Wallon, 1966 and 1983) e (Martinet, 1981)(volta)
  6. Cf. (Martinet, 1981: page 35), (Wallon, 1983: 51) e (Fraisse, 1985).(volta)
  7. Cf. (Pierce, 1993). Muitos autores como Clarke e Nattiez usam os conceitos semióticos de C. S. Pierce onde "signo" (representamen) é um elemento básico e primário na tríade semiótica dividida em "index", "icon" e "símbolo". Para Pierce "símbolo" tem somente com uma relação convencionada com o objecto. Outros teóricos usam, pelo contrário, a palavra "símbolo" como uma relação básica, sendo "signo" um símbolo convencional, não sendo necessária ao "signo" alguma relação directa (mimética, causal ou outra) com o objecto que esteve na génese da sua existência. Cf. (Wallon 1966: 248).(volta)
  8. Em analogia com a pintura, que é uma ilusão de espaço virtual. Cf. (Langer, 1957: 36).(volta)
  9. Segundo definição de (Shaeffer, 1966).(volta)
  10. Cf. (Gabrielson, 1983), (Clynes and Walker 1983) e (Rösing, 1993).(volta)
  11. Mesmo os que são algum tipo de mimesis do movimento (ascensuscruxis, etc.), pois, em muitos casos, esta relação não é óbvia nem passível de ser ouvida.(volta)
  12. Em termos Peircianos, símbolos.(volta)
  13. É interessante a citação do acorde de Tristão como um símbolo na música do séc. XX.(volta)
  14. Uma citação de um estilo.(volta)
  15. Esta definição não está em contradição com a definida por Schaeffer e Maneveau, excluindo, no entanto, toda a semiosis externa (exógena) como os símbolos orgânicos e as organizações sonoras simbólicas.(volta)
  16. Talvez ainda diferentes graus de compreensão.(volta)
  17. Cf. (Maneveau 1977)(volta)
  18. O facto de serem consideradas como "música clássica" ou "popular" são definidoras do seu carácter simbólico socio-cultural.(volta)

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2)


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A RUA NO IMAGINÁRIO SOCIAL
Luciana Francisca Cabral
Mestre em geografia pela Universidade Federal Fluminense – RJ – Brasil

A Rua e Suas Significações



O estudo das ruas se apresenta com relevância em muitos aspectos, principalmente porque não se pode conceber uma cidade sem as mesmas. Os múltiplos encontros realizados nas cidades são mantidos e alimentados pelas trocas, que estabelecem as relações sociais. A rua, então, passa a ser, por excelência, o grande palco das sucessivas cenas e dramas, enfim, lócus das diversas representações da sociedade.

Algumas abordagens teóricas

Para determinadas pessoas, a rua é mais que um simples passar de transeuntes, ela possui uma “alma encantadora”, como nos informa João do Rio, que com seu potencial literário descreveu o amor que sentia pelas ruas, revelando de maneira sutil seus movimentos. Para ele, a rua não é um simples alinhamento de fachadas, ela é agasalhadora da miséria, é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. A rua é generosa, é transformadora de línguas, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa. (1995: 4)

Na visão dos arquitetos e urbanistas, por exemplo, as ruas ligam os múltiplos pontos de interesse particular ou semipúblico, formando o que Santos chama de uma rede de canais livres e de propriedades coletivas. Se não existissem, não haveria troca de espécie alguma, pois servem de suporte ao deslocamento de pessoas, veículos, mercadorias, informações (1988:91). O autor nos fala ainda das multiplicidades da rua com suas inúmeras funções e apropriações como suporte não só da arquitetura, que por si só é obra das relações humanas, mas também como local de encontro.

Para alguns autores da Geografia, a rua é vista como uma dimensão concreta da espacialidade das relações sociais num determinado momento histórico, mais do que isso, nas ruas se tornam perceptíveis às formas de apropriação, nelas se afloram as diferenças e as contradições que envolvem o cotidiano, enfim, as ruas se revelam como elemento importante de análise da sociedade.

Segundo Carlos (1996:88), no transcurso de um dia é possível presenciar que as Ruas da cidade são tomadas por passos com ritmos diferenciados, com destinos diferentes. A autora afirma que as ruas guardam múltiplas dimensões, portanto, podem ter o sentido de passagem; o sentido de fim em si mesmas quando seu uso se volta para a realização da mercadoria; o de mercado, onde camelôs e feiras reúnem pessoas; o de festa; o de reivindicação; o de apropriação como território e, finalmente, o sentido de encontro.

Lefebvre (1999), em seu livro A Revolução Urbana, apresenta argumentos favoráveis e contrários à dinâmica da rua. Em sua análise, o autor afirma que a rua é mais que um lugar de passagem e circulação. Ele argumenta que com a invasão dos automóveis destruiu-se toda a vida social e urbana, impedindo que a rua fosse o local do encontro. Para ele, o encontro espontâneo proporcionava sentido à vida urbana. Ao elaborar seus argumentos contrários sobre a rua, Lefebvre questiona o tipo de encontro que ali poderia ser estabelecido. Segundo o autor, uma vez que o indivíduo caminha lado a lado com o outro, não existe o encontro. A rua, nesse aspecto converte-se numa rede organizada pelo/para o consumo.

A rua e a evolução de seu significado social

Anterior à era contemporânea, os logradouros públicos podem ter sido evitados pela aristocracia, para darem lugar às classes menos favorecidas, uma vez que a estratificação social sempre existiu. Porém não se podia impedir que as pessoas se movimentassem em espaços públicos.

É a partir da retificação das ruas, projetadas por meio das ações urbanísticas a fim de atenderem às novas necessidades das cidades, que as mesmas passaram, então, a ser “obra” da classe dominante sendo por ela utilizadas.

Para Saldanha, a rua possui a mesma essência da praça, sendo aberta, ela é épica e histórica. Em sua análise sobre a rua, o autor aponta que:



(...) a vivência da praça por parte das classes altas terá sido sempre diversa da vivência por parte das classes baixas: a construção mesma dos “logradouros” foi sempre obra das classes dominantes. (1993:22)

Nesse sentido, passaram a ser construídas com determinados propósitos: como local de festejos e cerimônias, pois tinham como função servir de espaço público, onde era comum a convivência social, por onde as pessoas passeavam tranqüilamente e faziam dela um espaço de lazer.

A rua, então, se apresenta como o resultado da contradição entre o público e o privado. Todavia, é importante que se esclareça sob qual concepção compreendemos o público e o privado. Segundo Sennett (1993), o público e o privado sofreram alterações em seu significado, desde a antiga Roma até a era moderna. Mas foi no século XVIII que os padrões modernos passaram a referenciar as duas dimensões da vida social.

O autor ressalta o espaço público como algo desprovido de sentido, uma vez que arquitetos projetam edifícios e se preocupam apenas com a estética e a visibilidade, fazendo com que algumas ruas do centro se transformem em local de passagem.  Isso resume o que o Sennett chama de “supressão do espaço vivo”, quando o mesmo destina-se à passagem, e não à permanência.

Nesse contexto, a rua aparecerá como forma de passeio público e lazer. No século XVIII, surgem os famosos cafés e mais tarde os bares. Porém, o espaço público ainda era considerado um espaço morto, por estar iniciando o processo de movimentação, ou seja, ainda era um espaço vazio.

Na realidade, à medida que o processo de modernização foi se desenvolvendo, ocorreu uma certa supressão do espaço público, visto que esse espaço destinava-se cada vez mais à passagem, e não à permanência. Criou-se, assim, o paradoxo do espaço público ao longo dos anos.

Como elucida Benjamin (1989: 35), por volta do século XIX, surgiu uma relação entre o flâneur e as ruas quando aspirava-se, simbolicamente, à sua conquista:



A rua se torna moradia para o Flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês (...).

Para situarmos melhor a problemática da função das ruas, devemos ressaltar a interferência que os automóveis passaram a exercer, a partir do início do século XX, nas vias públicas, pois não é possível observarmos e conhecermos as ruas dentro de veículos. Estes nos oferecem “liberdade” de movimento, mas, ao mesmo tempo, tiram a liberdade de movimento de quem deseja passar e conhecer as ruas da cidade.



Recorrendo mais uma vez a Sennett (1993: 28):



(...) as ruas da cidade adquirem então uma função peculiar: permitir a movimentação; se elas constrangem demais a movimentação, por meio de semáforos, contramão etc., os motoristas se zangam ou ficam nervosos (...).

Portanto, a movimentação dos automóveis provoca um efeito contraditório no espaço público, em especial no espaço da rua urbana. Com essa contradição, o espaço perde seu sentido.

O termo “cosmopolita”, derivado do público urbano, surgiu mediante os novos hábitos de se “estar em público”. Associado ao público urbano, cosmopolita, tem como significado em Sennett um homem que se movimenta despreocupadamente em meio à diversidade, que está à vontade em situações sem nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar (1993:31). Assim sendo, o cosmopolita é um homem público, no sentido de ter uma vida que é passada fora da família e dos amigos íntimos, onde a cidade seria o centro das relações públicas.

Em sua análise, Sennett (1993:32) afirma que o homem moderno perdeu a oportunidade da experimentação que as ruas lhe ofereciam por trocar o simples caminhar pela correria dos automóveis.

Quanto à definição de modernidade, acordamos com Hansen (2000), ao afirmar que ela encerra em si a valorização de elementos subjetivos e da razão, no que tange aos parâmetros sociais, políticos, culturais e cognitivos. Isso justifica a criação de instituições que, além de gerenciarem a vida da sociedade, legitimam ações movidas pela racionalidade.

Como elucida Harvey (1992), a modernidade envolve uma série de rupturas com todas e quaisquer condições históricas precedentes, portanto, é caracterizada por um interminável processo de interrupções e fragmentações internas. Mas, na realidade, a compreensão e a visão moderna do mundo está estruturada em diferentes modelos de racionalidade, por isso, os conflitos (diferenças) surgem nos arranjos espaciais.

Para o geógrafo Yázigi (2000), após as transformações urbanísticas estruturais em todo o sistema viário e o aumento da frota nacional de veículos, as ruas passaram a ser espaço destinado ao automóvel. Os zoneamentos atuais nas cidades marcam as funções e usos do espaço, influenciando diretamente na vida dos pedestres.

Com a modernidade, mudanças comportamentais chegaram à cidade. Tais mudanças interferiram de forma negativa na relação da sociedade com a rua, principalmente a partir de 1960, quando ocorreu o retorno da intimidade para os interiores, priorizando-se mais os salões, os clubes e centros esportivos em detrimento da rua como espaço público.

A era contemporânea trouxe consigo benefícios e desequilíbrios ao contribuir com a cisão do espaço público. As ruas e calçadas deixaram de ser espaço de divertimento. Nesse contexto, surgem a televisão, o telefone e a ampliação dos problemas sociais, como a violência. Todos esses fatores correlacionados contribuíram, direta ou indiretamente, para o “esvaziamento” das ruas.

As ruas das grandes cidades foram transformadas num espaço tumultuado, onde centenas de pessoas de todas as classes e situações passam correndo umas pelas outras, sem ao menos se olharem. As ruas das grandes cidades deixaram de ser espaço de passeio e lazer para converter-se em espaço de indiferença.

A rua e suas apropriações

A rua como extensão da casa

Da Matta (2000:15), em seu livro A Casa & a Rua, trabalha Casa e Rua como duas “categorias sociológicas”:

Quando digo então que “casa” e “rua” são categorias sociológicas para os brasileiros, estou afirmando que, entre nós estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de possibilidade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas.

A relativização que Da Matta (2000) propõe entre o espaço da casa e da rua gira em torno da concepção do “espaço moral”. A moral e os bons costumes estavam associados ao espaço da casa. Esta representava - e representa até hoje - o espaço íntimo e privativo da sociedade brasileira desde a época colonial. Na casa se poderia ter opinião, chamar a atenção, ter expressão; atos que, na rua, seriam condenados.

Enquanto a rua possui oposição, representada pela fluidez e movimento, nela se encontram os indivíduos anônimos, vigorando também nesse espaço o discurso da impessoalidade, onde os segmentos dominantes, como elucida Da Matta, tendem a tomar o código da rua para produzirem a fala totalizada, a qual baseia-se em mecanismo impessoal, simbolizado: pelo modo de produção; luta de classe; subversão da ordem, enfim, a lógica do capitalismo. Nessa concepção o foco está somente nas leis, e não nos indivíduos.

Para Da Matta (2000), na rua é possível sermos desrespeitados por aqueles que representam a “autoridade”, pois somos vistos por eles como “subcidadãos”. Por não termos voz na condição de “subcidadãos”, apresentamos um comportamento “dúbio” ao jogarmos o lixo e sujarmos ruas e calçadas, sem cerimônia, e ao desobedecermos às regras de trânsito.

Na verdade, não recriamos na rua o mesmo espaço caseiro e familiar, não vemos a rua como espaço público, no sentido de: pertence a todos, espaço comum, de todos. Como adverte Da Matta (2000), a nossa sociedade tem uma cidadania em casa, outra no centro religioso e outra na rua.

Segundo o autor, determinadas expressões marcam a distinção entre casa e rua: “vá para a rua!”; “vá para o olho da rua!”; “estou na rua da amargura!”, essas expressões, denotam rompimento e solidão. Mandar alguém ir para “o olho da rua” significa rompimento e deixar alguém “na rua da amargura” significa solidão, desproteção, estar sujeito às normas vigentes da rua.

Sabemos que essa concepção da rua e da casa é herança da nossa origem colonial, pois o que permeia hoje as duas concepções teve inicio com as regras (normas) estabelecidas e legitimadas pela sociedade colonial, de base escravista. Normas estas relacionadas a atitudes, gestos, roupas, enfim, papéis sociais aceitos pela sociedade da época.

Essas regras estabeleciam o comportamento da sociedade e sua relação com o espaço da rua, as quais estavam de acordo com os valores daquela época. Por isso, os viajantes que retrataram a cidade do Rio de Janeiro, na época colonial, mostraram muito bem o espaço da rua designado aos negros, aos ambulantes e aos escravos-de-ganho, pois esses eram vistos como insolentes.

Da Matta (2000), ao abordar a casa e a rua como categorias sociológicas, não as faz como oposição absoluta, visto que as mesmas se reproduzem mutuamente, pois também na rua há espaços ocupados no sentido da casa, onde determinados grupos sociais vivem como “se estivessem em casa”. Mas, o que nos motiva a estudar a rua, é o fato de a mesma admitir as diferenças.

Percebemos a importância das ruas antigas no contexto da cidade do Rio de Janeiro, quando lemos algo a respeito das mesmas, sob a ótica dos viajantes que por lá estiveram e registraram suas impressões. Nelas, notamos a presença dos vendedores ambulantes que, a princípio, nos parece que foram os que mais circularam pelo Rio Antigo. Segundo Chambelain (s/d: 97), são comuns no Rio de Janeiro vendedores ambulantes, que batem de porta em porta, visitando os arredores até várias léguas de distância, oferecendo mercadorias de toda sorte.

Dentre os vendedores ambulantes que percorreram as ruas do Rio Antigo, estavam – no primeiro momento – os escravos-de-ganho. Mais tarde vieram os imigrantes: franceses, ingleses, italianos, árabes e judeus.

A forma-aparência das casas estava de acordo com o momento histórico e com o alinhamento das ruas e, segundo Chambelain, apresentava-se da seguinte forma:

A maioria das casas, especialmente as dos arrabaldes da cidade, possuem um só pavimento, com portas e janelas de gelosia, chamadas rótulas, muito apropriadas para a entrada de ar (...) ou que sem dúvida contribuem para manter os aposentos frescos enquanto que os moradores podem observar tudo o que se passa na rua – vantagem de não pouca importância para os brasileiros (s/d: 99).

Nas análises de gravuras, notamos o código de valores da época colonial através da forma-aparência das casas. As janelas serviam como mediação entre o espaço da casa e o espaço da rua. A rótula nas portas e as janelas amplas possibilitavam ver de dentro de casa o que se passava no espaço da rua. A princípio, as ruas nos parecem um espaço inteiramente público – no sentido de estar à vista de todos.

Segundo Hermann Burmeister (apud Da Matta, 2000), consta que pelas ruas do Rio havia mais gente de cor negra circulando, maltrapilhas ou seminuas do que gente branca com trajes convenientes. Mais adiante, o mesmo autor continua sua narração, dizendo que as ruas da cidade do Rio de Janeiro estavam entregues a capoeiras, vagabundos e gente de todo tipo.

Ao fazermos uma análise das informações mencionadas, podemos concluir: a rua no período colonial era espaço dos ambulantes, e não da sociedade, principalmente das mulheres. Esse fato reafirma a suposição da função da rua, anterior ao século XX, como espaço apenas de passagem para alguns e espaço do comércio e de permanência para outros.



Flanando pela rua

A importância do caminhar está, principalmente, no fato de se poder escolher por e para onde ir. O pedestre cria seu próprio espaço de enunciação e, desta forma, desconsidera a ordem espacial estabelecida, que condiciona e só nos permite conhecer caminhos lícitos.

Certeau (2000:176) nos fala, de forma poética, da importância dos passos que chama de um estilo de apreensão táctil de apropriação cinética. O caminhar forma mapas urbanos, transcrevem-se no espaço seus traços, moldam o espaço. O autor ressalta a importância da trajetória, dos passantes.

O ato de caminhar vai além das representações gráficas, pois Certeau (2000) encontra em tal ato a primeira definição de espaço de enunciação. Para ele, a enunciação do pedestre apresenta três características que se distinguem no sistema espacial: o presente, o descontínuo, o “fático”. Assim sendo, cabe ao caminhante atualizar, mudar, legitimar, desconsiderar, transformar, escolher, criar caminhos, de acordo com sua necessidade e sua vontade.

O exemplo dos atalhos representa todas as possibilidades do caminhante, visto que é ele quem o escolhe. Portanto, a caminhada privilegia ou não, muda ou deixa de lado, quando possível, elementos espaciais, podendo criar algo descontínuo.

Assim, o ir para lá ou acolá instaura uma articulação conjuntiva e disjuntiva de lugares. Para Certeau, (2000:177) o espaço geométrico dos urbanistas e dos arquitetos parece valer como o “sentido próprio” construído pelos gramáticos e pelos lingüistas, visando a dispor de um nível normal e normativo ao qual se podem referir os desvios e variações do “figurado”.

O autor afirma ainda que o espaço alterado se transforma em singularidades aumentadas e em “ilhotas separadas”, criando-se um “fraseado espacial” de tipo antológico e elíptico, em vez de um espaço coerente e totalizador.

A importância de se percorrer as ruas, como espaço público, está no fato de através delas, ser possível conhecermos a cidade. Visto que a cidade se inscreve, nos seus muros, nas suas ruas. Mas essa escrita nunca acaba. O livro não se completa e contém muitas páginas em branco, ou rasgadas percursos e discursos acompanham-se e jamais coincidem (Lefebvre 1999:114). Portanto, como já dissemos, somente quando percorremos a cidade nos surge à possibilidade de conhecê-la, pois na forma-aparência está o discurso urbanístico cristalizado.

Certeau (2000:179), ao abordar a retórica da caminhada, faz menção ao estilo e ao uso. Segundo ele, o estilo manifesta o plano simbólico, conota o singular e o uso define o fenômeno social, ou seja, remete a uma norma.

O estilo e o uso estão relacionados com a forma-conteúdo, pois a forma trata de uma disposição espacial e o conteúdo nos remete ao uso. A forma urbana tende a romper os limites que tentam aprisioná-la. Esses limites fazem parte do discurso do espaço público.

Segundo Canevacci (1993:22), a cidade apresenta enfoque polifônico e pode ser “lida” e interpretada de acordo com os olhares que se lançam sobre ela.

O autor acrescenta que:

Um edifício “se comunica” por meio de muitas linguagens, não somente com o observador mas principalmente com a própria cidade na sua complexidade: a tarefa do observador é tentar compreender os discursos “bloqueados” nas estruturas arquitetônicas, mas vividos pela mobilidade das percepções que envolvem numa interação inquieta os vários espectadores com diferentes papéis que desempenham..

As pessoas que circulam pelas ruas da cidade e lançam seu olhar sobre a mesma, na condição de espectador, fazem uma interpretação singular por conta da suabagagem experimental e teórica. Caso haja “comunicação”, o espectador pode mudar o sentido das formas de acordo com os signos e valores atribuídos no tempo e no espaço.

Como nos esclarece Canevacci, dependendo da percepção do espectador, pode ocorrer uma comunicação entre um edifício e a sensibilidade de um cidadão que elabora percursos absolutamente subjetivos e imprevisíveis (1993: 22). Ou seja, cada pessoa pode escolher um caminho, de acordo com o horário que lhe for conveniente e até mesmo pelo fluxo diário, enfim, cada pessoa pode elaborar seu próprio itinerário urbano.

Essa escolha pode estar relacionada com a forma ou até com o conteúdo. Uma arquitetura mais antiga ou contemporânea, assim como o seu uso pode atrair a circulação de pedestres que para lá se dirigem, de acordo com seus interesses.

Canevacci (1993:22), em sua abordagem, afirma: cada forma arquitetônica tem o poder inexaurível de comunicar-se através de todo o aparelho perceptivo-emotivo e racional as memórias biográficas elaboram mapas urbanos invisíveis, por isso o autor afirma ser a comunicação urbana um diálogo, retirando desta a visão restritamente unidirecional.

Lynch (1999:1), ao falar da importância da imagem, nos esclarece que não somente as partes físicas da cidade (as formas) são importantes, mas também os elementos móveis (as pessoas) e suas atividades, pois estão todos inseridos na dinâmica da cidade. Nesse sentido, as pessoas são mais do que meros observadores do espetáculo são parte dele. O autor traduz a imagem como combinação de todos os sentidos.

Para identificar-se o ambiente, necessariamente tem que usar os sentidos, assim como outros indicadores como: mapas, placas de sinalização nas ruas, sinais de trânsito, placas de itinerário de ônibus etc. Lynch (1999) segue em sua análise, ressaltando a importância da orientação, no sentido de equilíbrio e bem-estar. O estar perdido nos remete à angústia.

No processo de orientação, o quadro mental nos possibilita suporte não só quanto à posição geográfica, mas quanto ao equilíbrio emocional. Portanto, existe forte ligação entre o ambiente e o observador, pois o mesmo seleciona, organiza e atribui significado a tudo que vê. Nessa acepção, afirma o autor que a imagem de uma determinada realidade pode variar significativamente entre observadores diferentes (1999:7).

Sendo assim, poderíamos ressaltar que a trajetória passa a ter valor e significado quando há o despertar do passante, quando ele se abre ao desconhecido, quando ele observa a cidade utilizando o aparelho perceptivo-emotivo e racional. Só então ele poderá construir sua memória biográfica da cidade, pois para elaborar mapas invisíveis, utilizando o cognitivo, é preciso despertar o olhar e perceber a “comunicação” que está presente no urbano, por este motivo ressaltamos a importância das ruas neste contexto.


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